O BRINCAR COMO FERRAMENTA TERAPÊUTICA
Inês Santos, Psicóloga
Quando pensamos em brincar, a imagem que nos surge pode parecer simples: crianças a rir, a inventar histórias ou a correr de um lado para o outro.
Mas por detrás deste comportamento aparentemente leve, esconde-se um poderoso instrumento de expressão, cura e desenvolvimento — especialmente no contexto terapêutico. Acreditamos que brincar é a linguagem universal das crianças. E como qualquer linguagem, ela pode ser compreendida, respeitada e utilizada com intenção terapêutica.
Brincar é mais do que uma atividade: é comunicação
As crianças nem sempre têm as palavras necessárias para explicar o que sentem. Emoções como tristeza, medo ou frustração podem surgir nos seus jogos, personagens e cenários imaginários. O brincar permite-lhes explorar e processar essas emoções num ambiente seguro e simbólico.
Por isso, o terapeuta que observa e participa (com sensibilidade e propósito) neste brincar, consegue aceder a camadas emocionais profundas — muitas vezes inacessíveis através da conversa tradicional.
Benefícios terapêuticos do brincar
O brincar terapêutico traz inúmeros benefícios, entre os quais:
Promoção da autorregulação emocional: Ao representar conflitos internos através do brincar, a criança aprende gradualmente a lidar com as suas emoções.
Promoção da autoestima e da autonomia: Ao tomar decisões no contexto lúdico, a criança desenvolve um sentido de controlo e competência.
Resolução simbólica de traumas: Através do brincar, experiências difíceis podem ser “recontadas” de forma segura e simbólica.
Melhoria das competências sociais: O brincar com outros (ou mesmo com o terapeuta) promove empatia, cooperação e resolução de conflitos.
Melhoria de competências cognitivas: Os jogos estruturados também têm um papel importante na terapia, especialmente quando há objetivos específicos ao nível da promoção de competências cognitivas.
Brincadeira livre e jogos estruturados: duas formas complementares de intervenção
Embora a brincadeira livre seja essencial — pois dá à criança espaço para se expressar de forma espontânea — os jogos estruturados também têm um papel importante na terapia, especialmente quando há objetivos específicos ao nível do desenvolvimento cognitivo.
Jogos que muitas famílias já têm em casa podem ser grandes aliados neste processo. Aqui ficam alguns exemplos:
Jogo da Memória – Estimula a atenção seletiva e a memória visual. Ideal para crianças que têm dificuldade em manter o foco ou reter informação visualmente apresentada.
“UNO” ou “Dobble” – Trabalham a atenção sustentada, o controlo inibitório e a flexibilidade cognitiva, pois exigem que a criança reaja a mudanças rápidas e iniba respostas impulsivas.
Puzzle – Promove o raciocínio espacial, a resolução de problemas e a persistência. Pode ser usado com crianças que desistem facilmente perante desafios.
Jogo “Quem é Quem?” – Estimula a formulação de hipóteses, o raciocínio dedutivo e a discriminação visual.
Jogo de tabuleiro “O Lince” – Trabalha a velocidade de processamento visual e a atenção dividida.
Estes jogos, quando usados em contexto terapêutico, são escolhidos com intencionalidade e adaptados às necessidades específicas de cada criança. O mais importante é que sejam divertidos, para que a criança se envolva naturalmente, sem sentir que está a ser avaliada.
O papel do terapeuta no brincar
Não se trata apenas de deixar a criança brincar livremente — embora o brincar livre tenha um valor imenso. No contexto terapêutico, o terapeuta:
Observa os temas recorrentes no brincar (monstros, separações, resgates, castelos);
Participa com empatia, sem invadir o espaço simbólico da criança;
Introduz, quando adequado, elementos que ajudam a reorganizar a narrativa interna da criança;
Ajuda os pais a compreenderem o que está a acontecer na terapia e como apoiar o processo em casa.
E em casa, como os pais podem usar o brincar de forma terapêutica?
Os pais não precisam de ser terapeutas, mas podem usar o brincar como forma de conexão emocional e escuta ativa. Partilho algumas dicas:
Disponibilizar tempo e espaço sem distrações para brincar juntos;
Seguir o ritmo da criança, sem direcionar ou corrigir o jogo;
Fazer perguntas abertas, como “O que está a acontecer aqui?” ou “E depois, o que faz o boneco?”;
Validar emoções que surjam durante o jogo, sem julgar ou minimizar.
Conclusão
O brincar é uma ponte entre o mundo interior da criança e o mundo exterior. Quando usado com intenção terapêutica — seja em consultório ou em casa — torna-se uma ferramenta transformadora, que respeita o tempo e a linguagem da infância.
Na Terapia ao Quadrado, honramos esta linguagem e utilizamo-la todos os dias como parte essencial do processo terapêutico. Porque brincar é coisa séria.