O TERAPEUTA E A MORTE DE UM PACIENTE: QUANDO O CUIDADO NÃO TERMINA
Raquel Carvalho, Terapeuta da Fala
Nem sempre estamos preparados. Formamo-nos para intervir, reabilitar, comunicar, aliviar. Mas poucos falam sobre aquele momento em que tudo se silencia... e o paciente parte.
Para um terapeuta, a morte de um paciente não é apenas um desfecho clínico. É a interrupção de um vínculo, de um caminho percorrido em conjunto. É o adeus a alguém cuja voz ouvimos crescer, cujos gestos ajudámos a reconstruir, cuja história passou a habitar um pouco em nós.
É normal sentirmos tristeza, impotência, ou até frustração. É natural que o luto aconteça — mesmo que de forma silenciosa. Afinal, cuidar envolve afeto, empatia e presença. E quem se envolve, sente.
Falar sobre a morte é também uma forma de dignificar o cuidado. Permitir-nos viver esse processo, partilhá-lo com a equipa, e ressignificá-lo. Isto é essencial para mantermos a nossa humanidade e continuarmos a cuidar dos que ficam.
Ser terapeuta é, também, estar presente... mesmo nos silêncios da ausência.
Falar da morte continua a ser um tabu — também entre os profissionais de saúde
Na formação académica de um terapeuta, aprendemos a avaliar, a intervir, a planear objetivos, a escolher estratégias, a acompanhar progressos. Falamos sobre ciência, funcionalidade e eficácia terapêutica. Mas há um tema que raramente se aborda: a morte. E, mais ainda, a morte de um paciente.
Não é apenas uma ausência que se instala. Para quem cuida, para quem se envolve, é um silêncio que pesa. E é natural que doa.
A morte enquanto parte da jornada terapêutica
Acompanhar um paciente é muito mais do que aplicar técnicas. É observar com atenção, escutar com empatia, ajustar planos à realidade da pessoa, celebrar pequenas vitórias. É, acima de tudo, criar vínculo — mesmo dentro dos limites éticos e profissionais.
Por isso, quando um paciente parte, o impacto é real. A relação terapêutica termina, mas o que foi construído permanece. Fica a memória do percurso, das sessões difíceis, das conquistas partilhadas, dos momentos em que o simples gesto de estar ali fez diferença.
O terapeuta também vive a perda, ainda que nem sempre possa dar-lhe voz ou lugar.
Validar o luto do terapeuta
O luto profissional é, muitas vezes, silencioso. Pode surgir como tristeza discreta, cansaço emocional, ou até como uma necessidade de parar e respirar fundo. Em contextos onde se valoriza a “resiliência”, o “profissionalismo” e a “capacidade de separar as coisas”, nem sempre há espaço para que o terapeuta seja humano.
Mas é precisamente essa humanidade que torna o cuidado significativo. Validar o luto do terapeuta não o fragiliza — humaniza-o. Permitir-se sentir, falar, partilhar, encontrar escuta entre colegas, procurar supervisão clínica ou apoio emocional, quando necessário, são formas de cuidar também de quem cuida.
A ética do cuidado: até ao fim
Cuidar até ao fim é, muitas vezes, continuar presente mesmo quando a cura já não é possível. É garantir conforto, dignidade, companhia. Em alguns contextos, como nos cuidados paliativos, este princípio é mais visível. Mas ele também se aplica na reabilitação, na intervenção precoce, na terapia com crianças com doenças degenerativas, ou com adultos em fase terminal.
O papel do terapeuta pode não ser curar, mas aliviar. Estimular, escutar, acompanhar. E, quando necessário, despedir-se com respeito, gratidão e consciência de que cada sessão foi um espaço de encontro e cuidado.
Conclusão: continuar a cuidar dos que ficam
A morte de um paciente não termina o percurso terapêutico. Deixa marcas, memórias e aprendizagens. E desafia-nos a olhar para o nosso papel com mais profundidade.
Cuidar dos que ficam — sejam os familiares, a equipa, ou nós próprios — passa também por reconhecer esse impacto. Porque ser terapeuta é, sim, apoiar, intervir, estimular. Mas também é, por vezes, despedir-se em silêncio. E seguir em frente, mais conscientes, mais humanos, e ainda mais comprometidos com a essência do cuidado.