RECUSA E SELETIVIDADE ALIMENTAR: QUANDO A HORA DA REFEIÇÃO SE TORNA UM DESAFIO
Raquel Carvalho, Terapeuta da Fala
A recusa e a seletividade alimentar são situações frequentes na infância.
Descobre o que pode estar na origem destas dificuldades e de que forma a Terapia da Fala pode ajudar a transformar as refeições em momentos tranquilos e positivos.
Comer é muito mais do que um ato físico
Comer parece uma tarefa simples, mas, na verdade, é uma das funções mais complexas do corpo humano.
Envolve coordenação entre respiração, mastigação, deglutição, sensações tácteis, olfativas e gustativas, além de fatores emocionais e relacionais.
Por isso, quando uma criança recusa alimentos, demonstra seletividade ou se engasga com frequência, é essencial olhar para além da “manha” ou da “falta de apetite”. Estes comportamentos podem revelar sinais de desconforto físico, sensorial ou emocional.
Recusa alimentar: mais do que “não quer comer”
A recusa alimentar é uma das preocupações mais comuns entre pais e cuidadores.
Pode manifestar-se de várias formas: rejeição de determinados alimentos, resistência ao momento da refeição ou até choro perante a simples aproximação da colher.
Na maioria dos casos, não se trata de teimosia, mas sim de um mecanismo de defesa.
Algumas crianças recusam comer porque:
sentem desconforto com determinadas texturas, temperaturas ou cheiros
têm dificuldade em mastigar ou engolir
associam a alimentação a experiências negativas (engasgamento, dor, vómito)
vivem fases de maior insegurança ou mudança (entrada na escola, nascimento de um irmão, alteração de rotinas, etc.)
Forçar a criança a comer aumenta a ansiedade e reforça a aversão.
O Terapeuta da Fala ajuda a identificar a origem da recusa e a reconstruir uma relação positiva com a alimentação, respeitando o ritmo e o conforto da criança.
Seletividade alimentar: quando o paladar é “exigente”
A seletividade alimentar caracteriza-se pela recusa persistente de novos alimentos, preferindo sempre os mesmos sabores, cores ou texturas.
É comum em determinadas fases do desenvolvimento, mas torna-se preocupante quando limita a variedade e o equilíbrio da dieta.
Pode estar relacionada com:
hipersensibilidade sensorial (a criança sente texturas, cheiros ou sabores de forma mais intensa)
rigidez comportamental, dificuldade em lidar com mudanças
experiências negativas anteriores (engasgos, vómitos ou pressão para comer)
perturbações do processamento sensorial ou do espectro do autismo
O trabalho do Terapeuta da Fala centra-se na avaliação das funções orais, motoras e da deglutição da criança, bem como na compreensão dos seus padrões alimentares, desenhando estratégias graduais de introdução alimentar.
A intervenção é frequentemente articulada com o Terapeuta Ocupacional, que avalia e trabalha o perfil sensorial, a integração dos estímulos e a autorregulação durante as refeições. Esta abordagem conjunta permite que a alimentação volte a ser um momento de descoberta, prazer e segurança, respeitando o ritmo e o conforto da criança.
O papel da família nas dificuldades alimentares
A forma como a família reage à recusa ou seletividade tem um grande impacto na evolução do problema.
Comentários negativos, insistência ou comparações com outras crianças podem aumentar a ansiedade à volta da comida.
O Terapeuta da Fala trabalha em estreita colaboração com os pais, oferecendo orientação e estratégias práticas para:
adaptar o ambiente e o ritmo das refeições;
apresentar os alimentos de forma apelativa e gradual;
reforçar positivamente pequenas conquistas;
promover uma alimentação tranquila, sem pressa nem pressão.
Mais do que “fazer comer”, importa restabelecer o prazer de comer, respeitando o ritmo, as sensações e a confiança da criança.
O papel do Terapeuta da Fala
O Terapeuta da Fala é o profissional que intervém nas alterações da alimentação, mastigação, deglutição e sensibilidade oral.
A avaliação inclui observar como a criança se posiciona, como movimenta a língua e os lábios, a coordenação entre respiração e deglutição, e as respostas sensoriais durante a refeição.
A intervenção é personalizada e pode incluir:
treino das funções orais e da coordenação motora;
estimulação sensorial e introdução gradual de novas texturas;
estratégias de posicionamento e segurança alimentar;
acompanhamento familiar e trabalho em equipa (com nutricionista, terapeuta ocupacional, psicólogo, etc.).
O objetivo é que a criança coma com segurança, prazer e autonomia.
Conclusão
A recusa e a seletividade alimentar não são “birras” nem fases passageiras. São sinais de que algo não está confortável no corpo ou na mente da criança e merecem ser compreendidos com atenção, empatia e conhecimento.
A Terapia da Fala é fundamental para tornar a alimentação num momento seguro, funcional e positivo, em articulação com outros profissionais, promovendo o bem-estar físico e emocional da criança e da família.
Porque comer não é apenas alimentar o corpo, é crescer, explorar e partilhar momentos de afeto à mesa.



